Isabel permanece imóvel há largos minutos, deixou cair os braços e pôs os olhos no céu. À sua frente tem uma campa feita de cimento, com uma cruz tosca moldada no mesmo material. Ali jaz o corpo do seu pai, Manuel Jacinto Diogo. É o quinto dia em Angola e, para chegar ali, foi preciso percorrer hora e meia de caminho até Catete, mais uma hora numa estrada de terra vermelha até à aldeia de Quiminha, e depois uma boa meia hora de caminhada pelo meio do capim.

O patriarca descansa sob os ramos de uma faia, árvore que o povo ali chama de cura-tudo. «Tive uma conversa com o meu pai», diria Batata Doce nessa noite. «Há coisas que ficaram entre nós, mas isto eu posso avançar: contei-lhe que tinha tido muita sorte por ir com os portugueses. E que era feliz. E que não lhe levava a mal por ele não me ter encontrado.»

«Tive uma conversa com o meu pai. Contei-lhe que tinha tido muita sorte por ir com os portugueses. E que era feliz.»

Quiminha é um povoado que os portugueses construíram no final dos anos 1960 para albergar os trabalhadores que construíam a barragem do rio Zenza, um quilómetro abaixo. Uma vintena de casas ladeia a única rua da aldeia, que desemboca num enorme embondeiro onde o povo pendura em bolsas de palhinha os seus telemóveis – é, afinal, o único sítio com rede em quilómetros.

O tijolo das paredes está partido, as janelas há muito que perderam os vidros, portas são conceitos de materiais variáveis. Uma parte da família Jacinto mudou-se para o Caxito, outra para Viana, às portas de Luanda. Mas Manuel Jacinto Diogo permaneceria aqui até ao último dia. Tinha passado demasiados anos nas matas, o campo era-lhe absolutamente sanguíneo.

 

 

Os mortos da Quiminha descansam no alto do monte, no fim de um caminho de erva alta onde é preciso dar passos cuidadosos para não se ser surpreendido por cobras ou onças. Isabel cumpriu-o inteirinho de mão dada à irmã mais velha, Esperança. E esta, assim que chegou à campa paterna, desatou num prato de carpideira que emudeceu toda a comitiva.

«Pai, pai, trago-te a tua filha que os brancos levaram. Pai, pai, é a Isabel. Ela está viva, pai, ela vive.» Diante de um lamento tão profundo até as cigarras pareciam calar-se. Estava um calor inclemente, a paisagem ardia, e havia o peso daquele grito. «Ai, pai, esta é a tua filha. A tua filha voltou.»

As mulheres tinham-se abraçado pela primeira vez há um par de dias, quando Isabel chegara com Yuri ao Caxito. Aquela receção, em boa verdade, revelar-se-ia um dos mais emocionantes momentos de toda a viagem. A família aguardava-a alinhada à porta da casa de Esperança, uma residência espaçosa no meio do musseque.

Estavam ali umas boas 50 pessoas. Sobrinhos e sobrinhos-netos, primos e as três irmãs de Isabel ainda vivas: Esperança, Conceição e Florinda. No meio da rua os Jacinto tinham pendurado um cartaz com uma fotografia de Isabel e esta inscrição: «Seja bem vinda à sua terra, Isabel Jacinto Batata Doce. Aqui está a família que te espera há 50 anos.»

 
 

 
 

Ainda o jipe não tinha estacionado quando toda a gente começou a bater palmas. Isabel abriu a porta a tremer, um rio de lágrimas no rosto. Ela e Esperança correram uma para outra e lançaram-se num abraço tão apertado, tão apertado que parecia que queriam espremer a felicidade toda que tinham contida no peito. «Estás viva, minha irmã, estás viva.» Conceição e Florinda repetiram o gesto, e depois vieram cunhados e sobrinhos, tios e vizinhos. «Foi destes abraços que eu precisei durante muitos anos», haveria de dizer Isabel.

«Vamos entrar», anunciou Esperança, e o grupo moveu-se para o quintal da casa - cimento e telhado de chapa. E então começou a ouvir-se uma guitarra. Mateus Benedito, irmão de Yuri e filho de Esperança, liderava o grupo de uma dezena de sobrinhos de Isabel. Tinham preparado uma música para o acolhimento, à boa maneira evangélica. «O mesmo Deus que um dia fez com que te levassem foi o mesmo Deus que te trouxe. Bem vinda à sua terra, bem vinda à sua terra, bem vinda à sua terra natal.» O coro afinava-se e ia engrossando com as vozes da família inteira. Era um arrepio para toda a gente. Era uma alegria para Isabel, que chorava.

Assim que o carro deixou as três mulheres junto a Isabel, lançaram-se a ela como leões a uma palanca

Se esse encontro com a família paterna fora um monumento às emoções, a visita ao lado materno revelar-se-ia uma festa. Isabel sabia muito pouco sobre a sua mãe, sempre se interrogara como é que aquela mulher a tinha deixado partir sem contestação. Acabaria por esclarecer todas as dúvidas nos dias seguintes, mas, quando pela primeira vez conheceu as tias, não houve tempo para perguntas. Eva, Isabel e Florinda Kimussangue chegaram com atraso ao local de encontro mas, assim que o carro as deixou junto à sobrinha, lançaram-se a ela como leões a uma palanca.

 

 

«Isabeluê, Isabeluê», cantavam as três mulheres. Dançavam à sua volta, davam saltos e mais saltos, apalpavam-lhe braços, costas e pernas, como se quisessem certificar-se de que estava inteira. «Isabeluê. Isabeluê.» Uma multidão começou a juntar-se em torno de tanta alegria. Chegar à casa de Eva, no musseque do Monte da Areia, em Viana, era tarefa complicada e por isso tinham combinado ali, na esquina do embondeiro junto à penitenciária. É ponto central da cidade-satélite de Luanda, lugar de encontro de vendedores de água e frutos secos, praça de táxis improvisada.

«O que foi, o que foi», perguntava o povo estupefacto. E quando Eva lhes contou que era uma sobrinha que tinha sido levada em bebé pelos portugueses e voltara passados 50 anos, a dança tornou-se no baile de toda a gente. As pessoas – mesmo as que não a conheciam – choravam, saudavam Isabel e pulavam em volta dela numa felicidade desmedida.

Havia mais gente à espera em casa de Eva. Havia um banquete de funje de mandioca com calulu de ramada de batata doce, comida de pobre transformada em delícia. Mas o que houve sempre foi música. Uma coluna debitava aos berros o semba que embalava o reencontro. Mas o incrível enredo de Pedra no Sapato, o último hit de Baló Januário, não chegava aos pés da história que ali se estava a viver.

A família cumprimentava-a em abraços ritmados, as tias não a largavam por um minuto sequer, sempre em passo de folia. A meio da tarde decidiram ir até casa de Branca, filha de Florinda, e a festa foi festa ao dobro. Numa roda, Isabel dançava, e toda a genética africana sobressaía no gingar de anca. «Isabeluê. Isabeluê.» Às tantas pegaram-na em braços, o corpo inteiro no ar. E ela ria, ria, ria. Ria de regozijo e ria de alívio. Estava em casa.

 
 

A família era tudo o que sonhara. A terra de que não se lembrava era inegavelmente a sua. Mas o passado continuava a ser um mistério.

 
 

«Estou tão feliz por esta ser a minha gente, tão feliz», diria, no fim da festa. «Tive uma família em Portugal que me educou e deu valores. Tive, por causa dos militares que cuidaram de mim, a oportunidade de escapar da guerra e a sorte de construir a minha vida longe da miséria. Mas hoje senti que estas eram as minhas raízes.» Gente humilde e pobre, sim, «mas tão boa e generosa.» Nesse dia decidiria com os seus botões: «Eu sou de Angola.» E resolver-se-ia a pedir a nacionalidade africana. Era como se, aos 54 anos, se tivesse encontrado a si mesma.

Dias depois, Isabel haveria de iniciar uma demanda pelos seus registos de nascimento. Estavam no arquivo notarial de Catete. Num livro cinzento, uma folha escrita à mão em 1965, atestando de quem era filha e quando tinha nascido. Com isso, pôde tirar o bilhete de identidade e emocionou-se ao ver num cartão a vida resolvida.

Mas ainda lhe faltava perceber a história. Na emoção e na alegria do reencontro dissipara as dúvidas que tinha trazido de Lisboa. A família era tudo o que tinha sonhado. A terra de que não se lembrava era inegavelmente a sua. Mas o passado continuava a ser um mistério.

 

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Sabia o lado dos militares, de como a tinham encontrado e educado, de como a foram apoiando enquanto se fazia mulher em Portugal. Mas como é que o pai a tinha deixado ir? Porque é que a mãe a deixara no mato?

«Não foi ela que te deixou cair, Isabel, fui eu», disse Eva Kimussangue, de cabeça baixa e olhar dorido. A revelação aconteceu quando visitavam a aldeia natal de Isabel, o Zenza do Golungo. Durante 52 anos, a tia tinha carregado aquele peso no peito e podia finalmente aliviá-lo. Agora tornava-se claro porque é que, na primeira vez em que a vira, debaixo do embondeiro junto à penitenciária de Viana, lhe pedira para saltar para as suas cavalitas. Aconteceu no meio da dança. Com 71 anos, exigia à sobrinha de 54 que lhe subisse para as costas. «Daqui nunca devias ter caído», explicou-se. E começou a contar-lhe tudo.

 

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